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Evitando falar que o aluno errou – uma experiência durante uma revisão sobre funções! Por Ion Moutinho.

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Me ensinaram recentemente que não é apropriado um professor dizer para seu aluno que ele errou. Aceitei a orientação de imediato, pois fazia todo o sentido, é fácil imaginar a frustração de um aluno, até um sentimento de inferioridade, depois de ouvir de seu professor, na frente de colegas de classe, que sua resposta estava errada. Contudo, quando pensei melhor na questão, na verdade, quando planejei colocá-la em prática, percebi que não é tão simples não dizer que um aluno errou, quando é o caso, claro. Ainda mais quando se trata de ensino de Matemática. Se a resposta era o valor 2, mas o aluno respondeu 31, como posso deixar de dizer que ele errou? E, quando o aluno erra, como podemos corrigi-lo sem dizer que ele errou? Podemos deixar ele continuar a repetir os erros, ou propagá-los? Podemos deixar o aluno que não pensou da forma correta manter a sua forma de pensar? (“pensou da forma correta”? Até essa sentença fica ruim depois que passamos a pensar melhor, não?) Tive que me fazer essas perguntas depois que levei a questão para minha prática docente.

Hoje temos um artigo convidado. É com muito prazer que abrimos o espaço do blog ao professor Ion Moutinho Gonçalves, trata-se de um professor que tem um trabalho muito relevante na Educação Matemática, na formação de professores e, em especial, no ensino de números Reais. Com a palavra, o professor Ion.

Adequando minha prática docente

Me ensinaram recentemente que não é apropriado um professor dizer para seu aluno que ele errou. Aceitei a orientação de imediato, pois fazia todo o sentido, é fácil imaginar a frustração de um aluno, até um sentimento de inferioridade, depois de ouvir de seu professor, na frente de colegas de classe, que sua resposta estava errada. Contudo, quando pensei melhor na questão, na verdade, quando planejei colocá-la em prática, percebi que não é tão simples não dizer que um aluno errou, quando é o caso, claro. Ainda mais quando se trata de ensino de Matemática. Se a resposta era o valor 2, mas o aluno respondeu 31, como posso deixar de dizer que ele errou? E, quando o aluno erra, como podemos corrigi-lo sem dizer que ele errou? Podemos deixar ele continuar a repetir os erros, ou propagá-los? Podemos deixar o aluno que não pensou da forma correta manter a sua forma de pensar? (“pensou da forma correta”? Até essa sentença fica ruim depois que passamos a pensar melhor, não?) Tive que me fazer essas perguntas depois que levei a questão para minha prática docente. 

Gostaria de dividir com o leitor uma experiência que vivenciei ao aplicar uma importante estratégia didática de aprendizagem ativa e que me levou a perceber como tratar a questão de não dizer que o aluno errou. Para isso, vou contar um pouco sobre minha primeira aula com uma certa turma de curso universitário, de alunos recém saídos do ensino médio, quando o plano era fazer uma revisão do conteúdo de funções, antes de abordar o primeiro tópico da disciplina, limite de funções. Decidi utilizar uma metodologia ativa que tinha acabado de conhecer, quando os alunos fornecem os exemplos. Vou explicar melhor. 

Um exemplo de metodologia ativa 


Exemplos constituem uma componente constantemente presente em materiais didáticos ou em explicações instrucionais de professores. Muitas vezes os exemplos são fornecidos por uma autoridade (professor ou livro didático) e os alunos procuram aprender com estes exemplos. Entretanto, é possível apresentar uma abordagem um tanto diferente, quando se espera que os próprios alunos gerem exemplos, enquanto o professor é quem aprende durante o processo. Uma abordagem assim pode ter duas funções, cognitiva e avaliativa. Com relação à segunda, existe uma expressão muito interessante que aprendi com a educadora matemática e pesquisadora, Rina Zazkis, a saber, “janela para a mente do educando”. Segundo Zazkis e Leikin (2007), a geração de exemplos pelos próprios alunos pode agir como uma ferramenta de avaliação que opera como uma “janela” para a mente de nossos alunos. 

A estratégia didática que montei para minha aula foi baseada nas informações do interessantíssimo livro de Watson e Mason (2006). A orientação que segui foi bem simples, eu planejei apresentar em sala três perguntas: 1) Apresentar um exemplo de gráfico de função constante; 2) Apresentar um exemplo de gráfico função constante diferente do exemplo anterior; 3) Apresentar um exemplo gráfico de função constante diferente dos dois exemplos anteriores. Não posso ver o rosto do presente leitor ao ler essas três perguntas, mas tenho certeza de que sentiu certa surpresa e com algum humor. Sempre que apresento esse tipo de questionário em sala as reações dos alunos são muito interessantes. Continuando, segundo os autores, Watson e Mason, pedir por três exemplos do mesmo objeto leva um aprendiz a se forçar além do convencional e a criar suas próprias estratégias e perguntas. O segundo pedido de exemplo muitas vezes encoraja o aluno a mexer com a imagem que ele tem sobre o objeto matemático em questão, enquanto o terceiro pedido de exemplo pode levar o aluno a fazer perguntas como “O que mais é possível?” em vez de simplesmente tentar ajustar suas primeiras ideias sobre o assunto. Vejamos como foi a experiência na minha aula. 

A experiência em sala de aula


Depois de instruir os alunos, fiz a primeira pergunta e fiquei circulando entre as carteiras para ver o que faziam. Após um bom tempo fiz a segunda pergunta e posteriormente a terceira, sempre olhando as respostas de cada aluno, sem comentá-las, mas os incentivando a continuar na tarefa. Deixei bastante tempo para que todos terminassem e, então, foi a hora de abrir uma discussão em torno dos exemplos produzidos. Tudo corria de acordo com o planejado, mas foi nesse momento que aconteceu um problema, tinha esquecido de me preparar para não usar a palavra “errado” como resposta aos diversos exemplos inesperados que acabaram aparecendo. Eu não podia em hipótese alguma falar que algum exemplo estava errado, pois tinha explicado para eles que queria ver como eles pensavam, que não existia certo ou errado na tarefa que estava propondo. Bom, para ganhar tempo resolvi reproduzir todos os casos de respostas no quadro, sem fazer referência aos autores das respostas. Eu não podia pedir para cada aluno falar sobre seus respectivos exemplos, pois certamente provocaria o que justamente queria evitar, alunos envergonhados de apresentar uma resposta que não agradasse o professor ou a turma. Vou reproduzir quatro exemplos que se destacaram. 

O autor



Os dois primeiros exemplos foram feitos por uma mesma aluna. Eles tinham me chamado a atenção de imediato. “Como alguém poderia pensar em exemplos assim?”, “Como poderia deixar de dizer que aqueles exemplos estavam completamente errados?”, pensei na hora, enquanto olhava para o quadro, sem saber o que fazer. Curiosamente, antes de eu começar, a própria aluna tomou a iniciativa de dizer que os dois exemplos eram dela e que estavam errados, ela tinha se arrependido de ter feito aquilo, disse que tentou fazer algo diferente, mas que não tinha dado certo, ela mesma reconheceu que o primeiro desenho nem representava uma função. Por um lado, fiquei aliviado de não precisar dizer que ela estava errada, mas me senti mal pela situação, tinha prometido aos alunos que não existia errado naquela atividade e que eles podiam responder como quisessem. E foi justamente nesse momento que tive uma luz! Pedi para a aluna que explicasse como ela tinha pensado, o que tinha levado ela a estabelecer os dois exemplos como de função constante. A explicação dela foi muito interessante! Disse que o primeiro desenho representava a ideia de um ponto estar a uma distância constante da origem e que o segundo desenho representava a ideia de padrão constante, a função mudava, mas de alguma maneira se repetia constantemente. Finalmente percebi que tinha encontrado uma boa maneira de discutir com os alunos sobre suas ideias sem levar para a questão do certo e errado, que às vezes quase parece uma questão de valor moral, do que é permitido e proibido. Comecei a perguntar para todos na sala “De que forma esse exemplo poderia representar a ideia de função constante?” à medida que apontava para cada desenho. Curiosamente os autores do desenho se identificavam, sem constrangimentos, e apresentavam suas explicações, mas outras pessoas também opinavam, criavam histórias que justificassem o exemplo. Por exemplo, no quarto desenho, um dos autores desse caso (muitos alunos apresentaram o quarto caso como segundo exemplo!) explicou que o gráfico representava uma função constante por apresentar um ritmo de crescimento constante. Essa fala dele foi espetacular para mim, eu ia iniciar o estudo de limite de função, na aula seguinte, justamente abordando a noção de ritmo de crescimento de valores para uma função. 

Depois de muitas discussões, com alunos participando ativamente, vimos que o termo “constante” acontecia com diferentes significados em diferentes exemplos e que não estavam de acordo com o exemplo padrão (o terceiro gráfico das figuras que reproduzi). Finalmente formalizei para eles o conceito de função constante, segundo a convenção matemática, ou seja, é uma função cujos valores são sempre o mesmo número, uma constante. E a partir daquele momento estabeleci que estava errado usar o termo “função constante” de forma diferente da convencionada. Em linguagem matemática mais precisa, temos a seguinte definição. 


Conclusões 


Estou fechando o relato da experiência com algumas conclusões obtidas agora por mim. Em primeiro lugar, um professor não precisa estabelecer o que é certo e errado, não de imediato e de início. Ele pode simplesmente partir das concepções de seus alunos. A questão que eu tinha problematizado no início se mostrou bem mais simples no final. A fala sobre certo e errado com um aluno pode ser colocada como resultado de um processo, um processo que inclusive pode contar com a participação dele. Uma maneira de interpretar o processo é pensar que a formalização do conhecimento matemático é um modo de estabelecer um conhecimento consistente com a compreensão do matemático profissional. Alunos desenvolvem seus próprios conhecimentos ao longo do processo de ensino e aprendizagem e uma questão para se saber é o quanto seus conhecimentos são consistentes com a convenção matemática. 

Promover a geração de exemplos pelos próprios alunos funcionou muito bem como uma metodologia ativa de aprendizagem. Pude perceber claramente os alunos refletindo e revendo suas concepções sobre o assunto estudado. Mas, cuidado! É preciso ter critério na elaboração de tarefas que peçam por exemplos. Existem várias possibilidades, porém é preciso estudar sobre o assunto. O leitor já ficou conhecendo aqui uma boa técnica, pedir para o aluno por três exemplos diferentes de um mesmo objeto. Eu gostei muito dessa abordagem e atualmente sempre que posso a colo em prática. 

Mais do que promover o aprendizado, exemplos gerados por alunos fornecem ótimas informações de avaliação de conhecimentos. Eu nunca teria imaginado que aprenderia tanto sobre a forma como meus alunos pensam a respeito do conceito de função. Realmente, minha aula abriu uma janela que me permitiu acessar a mente dos meus alunos! 

Ah! Ainda durante minha aula, depois de estabelecer o conceito de função constante, continuei o debate sobre a criação de diferentes exemplos, agora com todos participando. Os alunos tiveram uma dificuldade enorme para criar exemplos diferentes do prototípico, a terceira das quatro figuras anteriores. A propósito, “prototípico” é outro termo interessante que aprendi em Educação Matemática, se refere a um protótipo, isto é, que é usado como padrão. Só depois de uma boa discussão é que os alunos conseguiram gerar novos exemplos. O incrível na experiência é que ela possibilitou alunos usarem um amplo vocabulário associado ao conceito de função e também levou à discussão sobre o significado de vários termos citados, como domínio da função, valores da função, variação de valores e até limite de valores, ela deixou meus alunos muito bem preparados para a aula seguinte! 

Termino deixando o convite para professores planejarem uma aula baseada na geração de exemplos por seus alunos. Tenho certeza de que irão aproveitar muito! 

Quase esqueço de comentar, nós conseguimos produzir 87 exemplos essencialmente diferentes de funções constantes. E o leitor, quantos exemplos distintos de função constante o leitor seria capaz de produzir? 

Referências: 

WATSON, Anne; MASON, John. Mathematics as a constructive activity: Learners generating examples. Routledge, 2006. 

ZAZKIS, Rina; LEIKIN, Roza. Generating examples: From pedagogical tool to a research tool. For the learning of mathematics, v. 27, n. 2, p. 15-21, 2007.

Sobre o Autor

Ion Moutinho Gonçalves possui graduação em Matemática pela Universidade Federal Fluminense (1989), mestrado em Matemática pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (1991) e doutorado em Matemática pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Realizou pós-doutorado na Simon Fraser University, na área de Educação Matemática, em 2018. É professor associado da Universidade Federal Fluminense. Como pesquisador tem interesses na área de Geometria Diferencial e na área de Educação Matemática, com ênfase em questões sobre ensino e aprendizagem dos números reais e em formação do professor de Matemática.
         
Prêmio Shell de Educação Científica
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Laboratório Sustentável de Matemática: Evitando falar que o aluno errou – uma experiência durante uma revisão sobre funções! Por Ion Moutinho.
Evitando falar que o aluno errou – uma experiência durante uma revisão sobre funções! Por Ion Moutinho.
Me ensinaram recentemente que não é apropriado um professor dizer para seu aluno que ele errou. Aceitei a orientação de imediato, pois fazia todo o sentido, é fácil imaginar a frustração de um aluno, até um sentimento de inferioridade, depois de ouvir de seu professor, na frente de colegas de classe, que sua resposta estava errada. Contudo, quando pensei melhor na questão, na verdade, quando planejei colocá-la em prática, percebi que não é tão simples não dizer que um aluno errou, quando é o caso, claro. Ainda mais quando se trata de ensino de Matemática. Se a resposta era o valor 2, mas o aluno respondeu 31, como posso deixar de dizer que ele errou? E, quando o aluno erra, como podemos corrigi-lo sem dizer que ele errou? Podemos deixar ele continuar a repetir os erros, ou propagá-los? Podemos deixar o aluno que não pensou da forma correta manter a sua forma de pensar? (“pensou da forma correta”? Até essa sentença fica ruim depois que passamos a pensar melhor, não?) Tive que me fazer essas perguntas depois que levei a questão para minha prática docente.
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